Acho-me diante da televisão. Surge na tela a propaganda de um moderno carro, dotado de rica tecnologia. Exaspero-me. Acendo um cigarro a contragosto. Que aborrecido, não consigo me desvencilhar desse inimigo. Será este o décimo do dia? Nem sei... Continuo embevecida com o carro. Na minha idade, sinto-me comportando-me como uma adolescente.

Como tal, aprecio a velocidade. Importante o status que um carro empresta a quem o dirige.

Ainda mais aquele carro que desliza diante de meus olhos. Não tenho automóvel. Desfizeram-se do meu. Não posso ter um. Tiraram-me o emprego. Trabalhava com o que mais gostava.

Agora, também fui “parada.” Reduziram-me a biscates. Cortaram minhas asas e não posso voar. Vão dizer que pela idade e por minhas condições físicas, prejudicadas por causa da coluna, ou vista, ou sei lá o quê, já teria mesmo minhas atividades limitadas. Não é assim. Se o fosse, não sentiria esta sensação de prisão, de falta de liberdade. Tudo misturado. Onde estará a causa disso, qual seu verdadeiro efeito? Tornei-me medrosa. Com pânicos inexplicáveis.

Com a impressão de que há sempre alguém com os olhos em mim para me vigiar, para me criticar. Impressão só? Risos, zombarias. Sou tomada, com certeza, como iniciante da loucura.

Sei que não o sou. Mas posso estar sendo. Ninguém aguenta imune uma vida plena de pressões, sobressaltos, desencontros, solidão, indiferenças, desamor, momentos de amargura.

Perdi um irmão, tristemente. Ganhei outro, inutilmente. Espero dias de mais saúde. Para conseguir quebrar telhas e ganhar o azul, o ar, talvez o mar. Visitar o longínquo todo que me passa na mente como um filme, acionado por um forte vento que me carrega para bem longe de onde estou. Desvencilhar-me de tudo que se possa chamar de velho. Exercitar minhas forças em todos os sentidos e direções. Pular atuais possíveis barreiras, passando por todas elas rindo, quase mesmo gargalhando. Sem me importar com sol ou chuva. Sem ouvir vozes do exterior. Encontrar o novo numa pessoa nova. Liberta. Dona de si. Sem medos. Capaz de guiar-me a mim mesma em qualquer tempo, em qualquer espaço. E também um carro, o mais moderno e veloz do mercado. Fiquem certos. Me verão nesta vitrine, ou neste filme, como prefiram. 

 

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